Conto selecionado entre os melhores do país - 8º CONCURSO LITERÁRIO GUEMANISSE DE CONTOS E POESIAS / 2009


O anel e a safira


"...A nação pode estar certa de que o Rio Grande não esquecerá jamais os seus deveres. O Partido Republicano, (...) e eu, pessoalmente, tudo faremos para impedir um gesto de desvario. Não iniciaremos, nem auxiliaremos nenhum movimento contra a ordem constitucional...". Borges de Medeiros, governador do Rio Grande do Sul, em discurso realizado antes do golpe militar contra a ordem democrática e o presidente Washington Luís, em 1930.

Primeiro dia: faça-se a luz!

O vento nessa cidade é algo que impressiona, ele é como uma navalha que corta a superfície da pele de modo contínuo, causando enorme desconforto a quem se expões demais. São quatro horas da madrugada do dia 12 de outubro de 1930. O povo se prepara para o feriado nacional, e o golpista Vargas deve estar saindo do Rio Grande  rumo a Ponta Grossa. Tenho cinco dias para investigar os rumores que ouvi antes de sua chegada aqui na estação. “Tropas revolucionárias se preparam para invadir o Espírito Santo”, leio na manchete do jornal matutino que acaba de chegar a estação princesina. Eu e Safira teremos que tomar uma difícil decisão durante os dias que antecedem a chegada das tropas vindas do extremo sul.
Ei senhor, quer comprar a edição do dia? Pergunta um menino que acaba de abrir o pacote de jornais.
Me dê um exemplar, guri.
O senhor não é aquele famoso detetive que viaja pelo caminho do Peabiru com uma linda mulher ao seu lado???! pergunta surpreso o menino de apenas 12 anos e muita perspicácia.
Hã...sim, sou eu mesmo. Quanto custa o jornal?
Cinquenta centavos.
Pego o jornal e me dirijo ao hotel em que Safira está, minha bela colega de trabalho e amante ardente. Ao chegar lá, falo com o recepcionista, um rapaz jovem e magro, cheio de sardas na face.
Bom dia, procuro Safira Holmes. Creio que ela me aguarda.
Hã, senhor...a senhora Safira se encontra acompanhada pelo capitão Fragoso...
- Então me dê o quarto em frente ao dela para que eu possa descansar o resto da madrugada que ainda tenho. Tome, uma gorjeta para não ver quem chegou ou perguntou qualquer coisa.
Sim senhor! Quarto 13, ao lado do 15 e em frente ao dela, o 14.                                                                                                                                    
Subi pelas escadas até o quarto e esperei o jovem recepcionista voltar ao saguão. Então dei duas batidas leves na porta de Safira, como combinamos quando estivéssemos em outras companhias. Ela demorou alguns minutos, abriu a porta coberta com seu sobretudo. Entrega uma mala para Alvarez e entra no quarto mais uma vez. Ele olha pela fresta da porta e vê um homem enorme deitado sobre a cama, com duas garrafas de conhaque vazias no chão. Safira sai e percebe o olhar de Cabeza de Vaca.
Alvarez, sei que não gosta desses métodos que uso às vezes, mas consigo mais informações com aquele porco ali na cama depois de embebedá-lo que você conseguiria em cinco dias de buscas e perguntas na cidade. E o porco fardado bebeu tanto que não conseguiu fazer nada além de se esfregar e jogar aquele bafo em cima de mim se saber disso te deixa mais tranqüilo.
Alvarez abre a porta do quarto em frente ao que Safira estava e coloca sua mala dentro dele. Em seguida abre espaço para que ela entre. Ela se dirige ao banheiro e pede ao detetive que a espere na cama. O moderno hotel contava com um sistema novo de aquecimento de água, o suficiente para quebrar o gelo daquela manhã de 12 de outubro. Alvarez se deita, sonhando com as batalhas que ocorreram desde que no dia 03 de outubro de 1930 os conspiradores se tornaram revolucionários e tomaram em armas contra Washington Luís. É despertado pela bela Safira que o abraça silenciosamente, nua com sua pele de jade brilhando com as gotas de água que refletem a pouca luz ambiente.
Safira... Murmura Alvarez ao tocar seus lábios. E os amantes se reencontram, deixando o calor de seus corpos aquecerem aquele amanhecer gelado nos Campos Gerais. Ao se levantarem, o dia já estava perto da metade, o barulho de fogos e festas pelo dia da padroeira do Brasil preenchia a cidade e a estação de trem era seu local mais movimentado. Vendedores de algodão-doce ou bugigangas em geral, civis e militares, toda a cidade parecia estar presente à praça em frente a estação, para assistir as festividades. Mas algo mais havia no ar.
Temos um grande movimento de soldados pela cidade, não acha querido?
Sim Safira, e vai aumentar à medida que se aproxima o dia em que as tropas do Sul chegarão à cidade. Vou tentar saber com exatidão o horário. Conte-me, o que aquele porco contou que valeu o esforço de suas horas ao lado de tão abjeta pessoa?
Parece que o presidente ainda tem as tropas de São Paulo e do Distrito Federal. Tão importante quanto ter essas tropas, é saber que uma parte da Maçonaria e das autoridades eclesiais ainda não está convencida que essa 'revolução' será algo bom para o país, e espera o momento certo de agir. As informações que tenho confirmam nossas suspeitas: temos um grupo de conspiradores dentro do grupo revolucionário, que pretende um atentado contra o futuro presidente Vargas, por acharem ele “flexível” demais, segundo palavras do próprio capitão Fragoso.
E a maçonaria está avaliando se deixa ou não ocorrer esse atentado, segundo suas conveniências políticas. Bem, vamos comer algo naquele restaurante que vimos ao lado do hotel e à tarde farei uma visita a loja maçônica aqui perto.
E eu irei à missa... Safira olha para Alvarez e dá uma piscadela marota.
Começa a escurecer quando Alvarez consegue autorização para sua entrada na loja Maçônica local, uma das mais antigas do Estado do Paraná. O irmão maçom, guardião e vigilante responsável pela entrada da loja o recebe de forma muito gentil e educada, mas com a desconfiança habitual que a profissão de Alvarez Nunes Cabeza de Vaca causa em sociedades fechadas.
Então o senhor conhece o grande detetive londrino, senhor Alvarez Nunes?
 Sim, senhor Ribas. Foi ele que ensinou a mim quase tudo que sei hoje em termos de técnicas científicas e análise de casos policiais.
Uma profissão deveras interessante. Mas soube de um caso intrigante que ocorreu na Inglaterra, nos últimos anos do século XIX e que a polícia inglesa, mesmo com todas as técnicas modernas, não conseguiu encontrar o assassino de prostitutas... Sente-se certa ironia na voz do jovem maçom ao falar essas palavras a Alvarez Nunes.
Na realidade senhor Ribas, tive acesso a todos os documentos desse caso e se o autor não foi denunciado formalmente, é porque houve influências maçônica e da família real suficientes para que isso não ocorresse; o mal que adviria dessa natureza ser exposta a luz da verdade seria pior para sociedade vitoriana que os crimes cometidos nas sombras da capital inglesa...
Apesar do tom crítico na resposta de Alvarez, Ribas entendeu que o detetive manteve o silêncio necessário no caso perante a imprensa, ciente que envolvia muito mais que simples homicídios. Se desconhecia o caráter do homem a sua frente, agora o maçom tinha a confirmação dentro da casa maçônica que Alvarez é um cavalheiro entre seus pares.
Diga-me do que precisas, Alvarez.
Uma conspiração se anuncia dentro do estado de coisas que se forma com a revolução. De que lado estão os homens de bem dessa casa?
Estão ao lado da democracia e dos homens livres.
E quem será o autor da tragédia? Ele está aqui na cidade ou vem de trem com Vargas?
Nem um nem outro. Eu diria a você que fique de olhos abertos em Epitácio Pessoa, o paraibano, pois ele tem um débito de dois mil réis e nenhum dinheiro em caixa para pagar os revolucionários. Góis Monteiro, Juarez Távora, Leopoldo da Fonseca, Siqueira Campos, Borges de Medeiros ou membros do clero desgostosos com mudanças, todos podem ser o suspeito que busca... Todos têm seus motivos para não deixar o gaúcho chegar ao poder.
Uma lista grande e poderosa para eu investigar em tão pouco tempo, Ribas.
Fique atento e descubra o homem que fará o atentado, desconfio que ele tenha cúmplices buscando o melhor meio para isso, para abençoar nosso ditador. E descubra o horário de chegada do trem. Nós já decidimos, não vamos interferir nos rumos da história. A maçonaria se calará sobre esse assunto.
Eu já imaginava. Obrigado mesmo assim.
E o dia termina com as badaladas do sino da Igreja. Alvarez pensa: espero que as fofocas das donas de casa em meio ao sermão do padre tenham resultado em coisa melhor para minha Safira. Ao terminar de pensar isso, ouve quase sem querer a conversa de duas comadres que vinham da igreja matriz.
Você viu que homem elegante o novo bispo? Dizem que ele é médico...
Pois eu ficaria aos seus cuidados. Também com o ébrio que tenho em casa, se matando com bebidas de todos os tipos e cores...
Sexto dia: o teatro está formado e os atores em posição
Após quatro dias de investigações quase infrutíferas, partindo das informações coletadas por Safira sobre um grupo de dez cangaceiros vindos do nordeste para Ponta Grossa, Alvarez diz:
Tem alguma coisa que não está certo nisso tudo, Alvarez. Alerta Safira ao analisar todos os fatos recolhidos nos últimos cinco dias de investigação.
O que lhe parece Safira? Temos apenas uma hora até a chegada do trem a estação.
Tem soldados demais aqui para que qualquer um, mesmo aqueles matadores nortistas, possam apontar armas para Vargas. Um movimento em falso e qualquer pessoa que o faça seria varado a disparos de fuzil de todos os lados!
Concordo contigo. Safira, o que faria se quisesse se aproximar de um futuro governante para assassiná-lo sem despertar suspeitas?
Usaria um Judas. Responde ela.
O apito do trem anuncia a chegada das tropas vindas do Sul. A multidão se aglomera perto da estação saudando o futuro governante da nação brasileira, o ditador Getúlio Vargas.
Lá vem eles. Diz Alvarez ao apontar um grupo de dez a vinte homens a cavalo, disparando contra o trem de Vargas.
Antes que qualquer estrago possa ser feito, o efeito surpresa dos homens que tentam de assalto atacar o trem termina quando são repelidos por centenas de disparos de todos os lados, criando um pandemônio entre soldados e civis ao redor da estação. Dos vinte homens que atacavam o trem, doze ou mais fogem ante a saraivada de fuzis e outras armas de fogo. O restante é morto.
Um grupo de Judas bem pago para atirar e fugir. Aqueles que conseguem, recebem sua parte e a parte dos que morrem em ação. Vamos até a estação. O principal ator dessa manobra deve estar esperando a chegada de Vargas. Comenta Alvarez a Safira.
Ao descer na estação, Getúlio e sua comitiva são recebidos por autoridades locais e pelos comandantes da revolução. Entre eles uma figura insuspeita que se aproxima de Vargas e faz um gesto de apreço conhecido de todos. Antes que Vargas beije o anel do bispo, Alvarez se atira contra o corpo do sacerdote, jogando-o ao chão. Safira se mantém em pé entre os corpos dos dois, Getúlio e as armas dos guardas, que ficam espantados ao ver o sacerdote ser seguro pelas mãos de Alvarez, que não deixa ele esconder o anel.
Perdoe os modos de meu colega, senhor Vargas, mas foi a única forma de impedir que fosse envenenado pelo anel do bispo.
Após acalmar os ânimos, Safira e Alvarez explicam como chegaram ao autor do atentado.
Após meu encontro com a maçonaria, fiquei com a dúvida sobre quem deveria ser meu principal suspeito. Epitácio Pessoa era certamente um homem com ambições maiores, e uma dívida maior ainda, mas nada podia provar contra o tio do falecido João Pessoa.  Os gaúchos e os militares eram fiéis demais a revolução para traí-lo, restava apenas um poder grande o suficiente para fazer frente aos sulistas: o grupo de fazendeiros e industriais do Sudeste que não queriam a mudança na política atual. E tinham o apoio da igreja paulista que como sempre apóia aqueles que podem comprar seu pedaço de paraíso.
E como tu chegaste ao bispo Dornelles, detetive Alvarez? Pergunta o caudilho gaúcho.
Safira...diz Alvarez, olhando para sua companheira.
Bem senhor Vargas, quando fui a missa no dia em que Alvarez esteve na Maçonaria, percebi duas coisas além das conversas de comadres: o bispo fez um sermão sobre Mateus 24:32-36 e Lucas 17:20-21. Falava sobre o sinal dos tempos, sobre o Reino de Deus e sobre o papel da Igreja. Um discurso de descontentamento sobre a revolução que viria, com um sotaque bem paulistano.
Então somando a sua preocupação, com o perdão da palavra senhor Vargas, supersticiosa, em ser vítima de atentados a armas de fogo, mais o teatral ataque dos cangaceiros para exaltar a todos, concluímos que a pessoa que chegaria mais próxima do senhor sem despertar suspeitas seria o bispo. Um homem que tem o conhecimento médico necessário de venenos, somado ao anel de bispo, que seria beijado por você e injetaria o potente veneno. Com certeza senhor Vargas, você não reclamaria da picada, como homem de fronteira que é, não iria demonstrar desconforto com uma simples agulhada até que fosse tarde demais.
A conversa é interrompida por um apito de trem.
Senhores e senhora. Creio que esse apito avisa à hora de partirmos. Sua mão eu sei que posso beijar com segurança, bela jovem. E a sua aperto com a certeza que temos pessoas boas e sagazes na construção de um novo país. Diz Vargas beijando a mão de Safira e apertando a mão de Alvarez.
Para onde vão agora, jovens?
Continuaremos o caminho do Peabiru, o caminho que leva ao céu. Diz Nunes ao futuro presidente do Brasil.
- Bem, tudo o que precisarem é só entrar em contato comigo. Estarei no rumo a Capital Federal, mas sempre aberto aos amigos.
Epílogo
Será que fizemos a coisa certa, Alvarez? Pergunta Safira, deitada no colo de Alvarez, na cabine particular dos dois em um trem rumo a América de língua espanhola.
Safira, creio que só a história dirá se Getúlio será um libertador ou apenas mais um ditador na história desse país. Mas nós fizemos o certo. Nenhum homem ou religião tem o direito de decidir sobre a vida de outro.
Dizendo isso, Alvarez beija a testa da companheira e serra os olhos para a longa viagem que se inicia.

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